

Enquanto a deputada federal Carla Zambelli tentava convencer o então Ministro da Justiça, Sérgio Moro, a não desembarcar do governo Bolsonaro, ela tuitava que a imprensa tinha inventado uma fake news sobre sua saída.
Assim, apoiadores do presidente apontavam que o jornalismo tentava, “mais uma vez”, desestabilizar o governo com mentiras. Contudo, os fatos se revelaram verdadeiros logo no dia seguinte.
Esse episódio é uma oportunidade para analisar como Jair Bolsonaro ameaça a liberdade de imprensa, não apenas com seus discursos, mas também com suas ações.
Afinal, a conhecida expressão “quarto poder” existe devido à capacidade de influência que a mídia concentra em relação à opinião pública. Esse exercício pode ser imparcial ou direcionado a favor ou contra o governo vigente.
Uma vez que, a liberdade de imprensa é decorrência da liberdade de expressão, faz-se fundamental para que uma sociedade seja livre.
Em 2017, quando foi realizado o último Índice de Liberdade de Imprensa do Freedom House, o Brasil estava na 94º colocação dentre 199 países, angariando status de “parcialmente livre”.
O levantamento analisa os aspectos legal e econômico, avaliando leis e regulamentações que podem influenciar no conteúdo, assim como transparência, concentração de propriedade dos veículos e subsídios estatais.
Porém, a metodologia deste relatório engloba também o ambiente político, ao avaliar o grau de influência do governo nas notícias, independência editorial, acesso à informação, a diversidade de abordagens e os obstáculos enfrentados pelos jornalistas.
Agressões violentas e outras formas de intimidação estão entre as dificuldades consideradas na pesquisa. Nesse ponto, um levantamento da Federação Nacional dos Jornalistas de 2020 mostra que o cenário brasileiro piorou nos últimos dois anos.
Segundo o relatório, foram 208 ataques a jornalistas e a veículos de comunicação em 2019, contra 135 em 2018, o que representa um aumento de 54%. Os políticos representam 70% do total de autores, mas o presidente se destaca entre eles.
Jair Bolsonaro foi responsável por quase 60% dos ataques registrados no ano passado, uma média de um ataque a cada 3,14 dias. Esses dados foram baseados em pronunciamentos registrados por escrito no site do Planalto e em publicações feitas nas redes sociais oficiais do presidente.
Mas esses ataques não ficam apenas no discurso, representando um perigo à liberdade de imprensa e, consequentemente, à liberdade em geral.
O processo de deterioração das instituições, muitas vezes, começa com discursos ofensivos contra a imprensa por parte de líderes populistas e com viés autoritário.
Por exemplo, o então presidente equatoriano Rafael Correa chamava a mídia de “inimiga política ameaçadora”. Recep Tayyip Erdoğan, presidente da Turquia, afirmava que jornalistas “propagavam o terrorismo”.
Mesmo quando a popularidade do então presidente Lula chegava a quase 90% em 2010, ele afirmava que a cobertura da imprensa brasileira tinha “má-fé”.
A militância petista ficou marcada pelas críticas à grande imprensa, a apelidando de PIG (Partido da Imprensa Golpista).
A ascensão de líderes com discursos bélicos contra imprensa costuma polarizar à sociedade. Caso o público se convença de que a imprensa é uma ameaça e propaga mentiras contra a presidência, “se torna mais fácil justificar as ações empreendidas contra eles”, nas palavras dos pesquisadores Steven Levitsky e Daniel Ziblatt em “Como as Democracias Morrem”.
Durante governos do PT, por exemplo, diversos sites e blogs com editoriais favoráveis ao petismo recebiam dinheiro público, com aceitação entre os apoiadores do governo que compraram a narrativa anti-imprensa.
Ao assumir o Palácio do Planalto, em 2016, Michel Temer suspendeu repasses a esses “blogs sujos”, que recebiam juntos R$ 11 milhões por ano.
Outra consequência possível, diante de diversos casos históricos, é a radicalização da própria imprensa e da oposição em retaliação. Concluem os autores:
“Como resposta, ‘a mídia se sente ameaçada e pode abandonar o comedimento e padrões profissionais em busca de enfraquecer o governo’. Nesse ambiente, a oposição pode se precipitar de que o governo tem de ser afastado por meio de medidas extremas, como manifestações de massa, impeachment e, até mesmo, um golpe de estado.”
Murray Rothbard apontou que o estado suprime a crítica intelectual independente ao distribuir verbas para intelectuais de seu interesse. Nesse sentido, cortar a verba de toda a imprensa poderia ser uma ação ética.
Porém, o discurso de Jair Bolsonaro contra a imprensa não são apenas palavras, mas ações, cortando valores dos veículos cujo jornalismo lhe incomoda, e distribuindo mais verbas para outros canais.
Vale destacar que, apesar da grave crise fiscal brasileira, houve um acréscimo de R$ 15 milhões no orçamento federal para este fim em 2020.
Segundo levantamento da UOL, uma comparação dos faturamentos publicitários das emissoras SBT e Record, entre os primeiros trimestres de 2018 e 2019, mostrou crescimento no período, de 511% e 659%, respectivamente.
Enquanto a Record recebeu R$ 10,3 milhões e o SBT ficou com R$ 7,3 milhões, com ambas representando juntas 30% do público, a emissora com maior audiência no país recebeu menos: representando 36% da TV aberta, a Rede Globo caiu da primeira colocação para a terceira, sendo contemplada com R$ 7,07 milhões no ano passado.
Em janeiro deste ano, o Ministério Público de Contas entrou com um pedido para que o Tribunal de Contas da União (TCU) investigue se a destinação de verbas publicitárias feitas pelo governo federal não descumpre a Lei 12.813, que trata sobre conflitos de interesse.
Os encontros entre o presidente e alguns donos de emissoras se tornou frequente ao longo de 2019. No desfile de 7 de setembro em Brasília, por exemplo, Edir Macedo e Silvio Santos estavam ao lado de Jair Bolsonaro.
Na prática, Bolsonaro ampliou o financiamento à mídia sem qualquer critério. Trata-se, portanto, de uma forma de manipulação da imprensa pelo estado.
Em agosto de 2019, a presidência assinou a MP 892, que alterava a Lei das Sociedades por Ações. Caso aprovada, empresas de capital aberto não teriam mais a obrigação de anunciarem seus balanços em jornais, podendo utilizar seus próprios canais privados para tal.
Na prática, a medida provisória era benéfica porque reduzia custos para empresas. Porém, o presidente manifestou seu real interesse na ocasião, ao ironizar a perda de receitas para alguns veículos jornalísticos:
“Espero que o Valor Econômico sobreviva à Medida Provisória de ontem”.
Além do Valor Econômico, pertencente ao Grupo Globo, os principais atingidos pela medida foram os jornais regionais.
Não à toa, a fala de Bolsonaro foi interpretada como ameaça à liberdade de imprensa. Assim, uma MP que ajudaria na melhora do ambiente de negócios brasileiro, passou a ser interpretada como revanchismo por parte do presidente.
Dessa forma, ela foi rejeitada em comissão mista no Congresso, caducando em novembro de 2019.
Ainda de acordo com o relatório da FENAJ, dentre as 116 declarações de Bolsonaro contra a imprensa ao longo do ano passado, 105 foram com intuito de desacreditar os veículos ou causar suspeitas sobre o exercício do jornalismo no país.
Contudo, a última pesquisa global do Instituto Ipsos, que mede o quanto as populações confiam na mídia de seus países, expôs que os brasileiros ocupam o 4º lugar do ranking. Enquanto a média mundial é de -1%, o Brasil apresenta 35% no nível de confiança.
Além disso, de acordo com uma pesquisa divulgada pelo DataFolha em março, a maior parte dos entrevistados afirmou confiar nos tradicionais veículos de mídia para se informar sobre a pandemia do coronavírus.
Programas jornalísticos de TV e jornais impressos lideram com 61% e 56% de aprovação respectivamente. Já o Whatsapp e Facebook contam com a confiança de apenas 12% dos entrevistados cada.
Quando o tema liberdade de imprensa surge, normalmente, são discutidos dados sobre ditaduras como as existentes na Coreia do Norte e na China, sobre a qual recai, inclusive, a responsabilidade pela pandemia do Coronavírus.
Porém, isso não significa que um presidente no Brasil, como Bolsonaro, não possa representar ameaça à liberdade de imprensa. Afinal, outros antes dele também já desempenharam esse papel.
De fato, as políticas totalitárias desses países colocam a livre imprensa em maior risco. Entretanto, a Constituição de 1988 permite certa interferência na produção de notícias ao fazer distinção entre censura e controle.
O jornalismo deve cumprir o papel de informar a população a partir da apuração de fatos e acontecimentos. Mas, enquanto o Twitter, como organização privada, pôde apagar tweets de Bolsonaro por violação de normas internas, os veículos de comunicação não têm essa liberdade.
Uma vez que, o exercício da atividade configura-se como concessão de serviço público, as emissoras da TV aberta não podem negar espaço à transmissão de pronunciamentos oficiais, por exemplo.
Em suma, este texto não é uma defesa à integridade dos veículos de imprensa brasileira, mas do princípio da liberdade de imprensa como valor e alicerce de qualquer sociedade livre.
O Freedom of Press Act, primeira lei em apoio à liberdade de imprensa, foi protocolado há 254 anos pelo parlamento sueco. Desde então, grandes investigações jornalísticas protagonizaram momentos históricos e revelaram fatos e dados que jamais viriam ao conhecimento público por outros meios.